Projeto monstros e outros seres fantásticos
As crianças tiveram autonomia em todo o processo e exploraram o assunto através das diversas áreas do conhecimento.
O cenário: Uma sala de aula situada ao fundo de um pátio, de frente para uma área gramada e arborizada de onde podemos ouvir o canto dos pássaros. Este poderia ser um lugar tranquilo para relaxar, quando chega um grupo de crianças com animação e barulho de sobra! E a turma 24 do ano letivo de 2016 do Centro de Referência em Educação Infantil do Colégio Pedro II, situado no bairro de Realengo no Rio de Janeiro. Interessados em se divertir, partem para desbravar a escola, os livros e tudo o que a mente alcança em seu imaginário. Cheios de coragem, com olhos arregalados e ouvidos atentos, viajam nas histórias com personagens e lugares fantásticos e os levam para as brincadeiras de faz-de-conta. Gostam do diferente, do assustador, e querem saber e inventar sempre mais! Neste contexto, a partir da leitura do livro “Bruxa, bruxa venha a minha festa!” (DRUCE, 1995), surgiu a curiosidade e a vontade de conhecer um pouco mais sobre os personagens da história. A partir de então, começamos a nos aventurar na descoberta do desconhecido que nos levaria a lugares mágicos…
A participação ativa da criança nos projetos de trabalho
O Centro de Referência em Educação Infantil do Colégio Pedro II, em sua proposta pedagógica, busca uma relação democrática entre crianças e adultos no cotidiano da instituição. A criança e seus interesses devem nortear o trabalho desenvolvido, de forma que tenham a cara e a voz dos pequenos. Isto é vivenciado a cada dia, nos planejamentos realizados coletivamente e contemplando sugestões da turma; nos momentos de refeição, quando as próprias crianças servem sua comida com auxílio dos educadores; nas atividades diversificadas simultâneas que possibilitam que a criança desfrute do que tem mais interesse; nas idas ao banheiro ausentes de solicitações excessivas; no tratamento informal entre as crianças e seus professores, etc.
“Os espaços disponíveis para as atividades precisam, sobretudo, ser compreendidos como espaços sociais onde o educador tem um papel decisivo, não somente na organização e na disposição dos recursos, mas também na sua postura, na forma de mediar as relações, de se relacionar com as crianças, de ouvi-las e de instiga-las na busca de conhecimentos. São os educadores que dão o tom ao trabalho, que reforçam ou não a capacidade crítica e a curiosidade das crianças, que as aproximam dos objetos e das situações, que acreditam ou não nas suas possibilidades, que buscam entender suas produções, que dão espaço para a fala, a expressão, a autonomia e a autoria”. (CORSINO, 2006)
Numa escola que se propõe ter a criança como centro da proposta e “emponderá-la” de diversas formas, os projetos de trabalho não poderiam surgir de outra forma, senão a partir dos interesses das próprias crianças. Não se trata somente de levar em conta suas preferências, e sim de realmente ser este o fundamento de todo o trabalho desenvolvido. Um projeto que tem sua identidade na valorização do lúdico e da criança, uma educação infantil que considera cada um e sua individualidade no coletivo – uma proposta pensada COM elas, e não PARA elas.
Carlina Rinaldi, presidente da Reggio Children, fundação que promove a abordagem Reggio Emilia ao redor do mundo, nos fala sobre projetos na Educação Infantil:
“Um projeto, que vemos como uma espécie de aventura e pesquisa, pode iniciar através de uma sugestão de um adulto, da ideia de uma criança ou a partir de um evento, como uma nevasca ou qualquer coisa inesperada. Contudo, cada projeto está baseado na atenção dos educadores aquilo que as crianças dizem e fazem, bem como no que elas não dizem e não fazem. Os adultos devem dar tempo suficiente para o desenvolvimento dos pensamentos e das ações das crianças” (RINALDI, 2016, p.119)
No contexto explicitado anteriormente, o tema surgiu a partir dos interesses e personalidades das crianças da turma e do investimento das professoras em contemplar essa demanda. Assim, dando tempo aos pensamentos e ações das crianças, começamos a brincar de personagens de “Bruxa, bruxa, venha aqui na minha festa”, imitando o Lobo, o Tubarão, o Duende, o Pirata, a Bruxa, o Espantalho, o Fantasma e tantos outros. Para ampliar nosso conhecimento sobre seres como estes, levamos para a sala diversos livros sobre monstros, medo e seres fantásticos e passamos escolher, juntos, histórias para ler. Assim, embarcamos no mundo da fantasia através de livros como “Vai embora grande monstro verde” (EMBERLEY, 2009), “O Grufalo” (DONALDSON, 1999), “Quem tem medo de monstro”” (ROCHA, 2009), “Monstro Amor” (BRIGHT, 2012), “O Bicho-Medo e seu segredo” (PIMENTA, 2009), “Escola de Monstros Madame Mo” (TOKITAKA, 2010), “Os monstros mais medrosos do mundo” (BROWNE, 2015), “Criaturas Tímidas” (MACK, 2008), “Tico e os Lobos Maus” (GORBACHEV, 1999), entre outros.
Para além das histórias e das imitações de monstros, nos fantasiamos, aprendemos musicas de monstros como “Tumbalacatumba” (PALAVRA CANTADA, 2000), assistimos desenhos como “Historietas Assombradas (para crianças malcriadas)” (Borges, 2013), filmes como “Hotel Transilvannia” (Sony Pictures, 2012), “Monstros SA” (Pixar, 2001), “Paranorman” (Laika, 2012) e “Scooby-Doo na Ilha dos Zumbis” (Hanna-Barbera, 1998), dançamos fantasiados, brincamos de dança das cadeiras como monstros e chegamos até a fazer uma festa dos monstros que contou com a presença de bruxa, vampiro, pirata, fantasma, medusa, unicórnio, etc.
Em nossas histórias acabamos conhecendo também alguns personagens da mitologia grega, que conquistaram a turma e a acompanharam por muito tempo. Nossa festa foi toda pensada e executada junto ao grupo, o que demandou uma semana de muitas criações e curtições a cada adereço e enfeite produzido. Decoramos a sala e preparamos fantasias com produções das crianças que tiveram participação ativa em todo o processo, desde a escolha dos seres fantásticos que seriam “convidados”, até a elaboração das roupas que foi pensada e confeccionada por eles.
Em meio a tantas ideias e acontecimentos, tivemos de conversar e deixar claro todos os anseios de cada um para a turma, criando uma teia antecipatória onde tudo foi registrado com o máximo de detalhes colocados pelas crianças formando um coletivo de possibilidades.
No desenrolar do projeto, as crianças demonstraram cada vez mais interesse por seres diversos e embarcamos numa aventura com algumas criaturas do folclore brasileiro: conhecemos diversas lendas, andamos como o Curupira, recebemos visitas do Saci, que andou bagunçando nossa sala e escondendo nossas coisas, assistimos vídeos, criamos adereços, cantamos e dançamos. Nessa “brincadeira da dançar como monstro”, surgiu a música “Olha quem vem la”, criada pelo professor de Educação Musical Ronaldo Cotrim especialmente para as crianças, recheada de movimento e animação como de costume na turma.
Tal música se tornou um grande momento de descontração e brincadeira, em que as crianças exploravam o som da clava em diversos ritmos e imitavam o Curupira, o Saci e a Mula-sem-cabeça. Levando em conta este envolvimento da turma com o tema e a música, decidimos realizar uma apresentação na Festa da Cultura Popular, utilizando também os adereços que a turma já vinha produzindo. Além destes, também inventamos uma espécie de quebra-cabeça gigante com os personagens contemplados na música. Inspirados no livro Misturichos, de Beatriz Carvalho e Renata Bueno, que compõe nosso acervo da Ciranda Literária, brincamos não só de montar os personagens, como também de misturá-los, criando novos nomes para eles. Não poderia ser diferente: construída através de uma brincadeira, a apresentação foi muito divertida para todos. Depois da festa, todos se envolveram no uso do jogo e na elaboração de suas próprias criações.
Além do interesse pelas criaturas do folclore, outro personagem ganhou destaque em nosso cotidiano: O(a) Bruxo(a). Personagem de muitas histórias que despertavam o interesse dessa turminha, a Bruxa geralmente era representada como uma mulher adulta, malvada e feia. Algumas histórias já nos provocavam outro olhar, cujas personagens eram bruxas boas e até mesmo crianças. Porém, era sempre um personagem feminino. Diante deste quadro e da continuidade do interesse, aproximamos as crianças da história de um bruxinho muito famoso: Harry Potter (ROWLING, 1997). O mundo mágico desse menino que estudava em uma escola de magia encantou as crianças de forma surpreendente, mostrando-se curiosas, querendo saber mais sobre os personagens e detalhes da história, também brincando de serem bruxos.
Com crianças cada vez mais interessadas em conhecer mais desse universo, assistimos trechos de alguns filmes e tivemos contato com livros e materiais temáticos. Ao longo deste processo, descobrimos, na história de Harry Potter, seres que já havíamos conhecido antes como Unicórnio, Fantasma, Dragão, Lobisomem e Centauro. Além destes, uma diversidade de criaturas encantou a turma: cavalos esqueléticos voadores, gigantes, cachorro de três cabeças, duendes, elfos domésticos, aranhas falantes gigantescas e muitos outros. A narrativa envolveu a todos e começamos a explorar possibilidades: recebemos a visita de uma “bruxa”, brincamos de fazer feitiços, preparamos poções… Empenhados em ampliar suas vivências, mergulharam na magia do mundo fantástico, brincando de fazer poções com tudo que encontrassem pela frente, e feitiços com varinhas, que podiam ser um graveto ou um lápis.
Neste universo da fantasia, desenhamos muitos dos seres que nos encantaram desde o início de 2016 e, inspirados no “Livro Monstruoso dos Monstros” (da história “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban”), tivemos a ideia de criar o nosso livro, produzido com as ilustrações dos personagens favoritos e legendas de autoria das próprias crianças. As crianças se dedicaram tanto às ilustrações que avaliamos que seria interessante um momento especial de valorização e conhecimento do empenho e criação. Organizamos, então, uma tarde para o lançamento do livro e momento de autografo pelas crianças. Foi uma experiência inesquecível! O livro criado coletivamente foi exposto, as crianças puderam autografar versões resumidas e levar para suas casas, ler as histórias que nos inspiraram com seus familiares, tirar uma foto temática e até mesmo desfrutar de algumas guloseimas preparadas pela turma, como biscoitos amanteigados e gelatinas.
Todos também adoraram brincar com jogos de trilha, em que andamos por “casas” até chegar ao destino, sendo o favorito da turma o jogo “Floresta Encantada”, em que bruxas, unicórnios, dragões e corujas tentavam chegar a um castelo. Estes momentos nos motivaram a inventar um jogo também, e decidimos, através de uma roda de conversa, como seria o nosso jogo, escolhendo a temática dos monstros.
O imaginário e o real: do faz-de-conta à ciência
Ao longo do projeto, sempre nos deparávamos com dúvidas das crianças sobre a existência real dos seres que estávamos conhecendo. Assim, após a criação do “Livro Monstruoso dos Monstros”, conversamos sobre os seres que nele estavam. Dentre os personagens do livro produzido, alguns suscitavam curiosidades que careciam de pesquisa, como a aranha Aragogue, que era gigante e falava. “Será que existia mesmo uma aranha tão grande”” “Será que as aranhas falavam ou emitiam algum som”” “Quantas patas elas têm””. Perguntamos à turma como poderíamos descobrir informações e, através de suas ideias e questionamentos, decidimos pedir a ajuda das famílias para juntos, aprender sobre estes seres. Assim, listamos as perguntas feitas pelas crianças e enviamos aos familiares para que todos pudessem ajudar a pesquisar.
As crianças retornaram empolgadas contando que descobriram quantas patas tinham as aranhas, porque construíam teias, como nasciam, se eram venenosas ou não… Tal situação moveu as crianças, que propuseram novas questões e relataram descobertas. Uma aranha colaborou conosco ao aparecer bem ao lado de nossa roda quando falávamos sobre a quantidade de patas. Todos andaram, engatinharam e rastejaram atrás dela para descobrir. Foi muito divertido! Descobrimos que aquela tinha oito patas. Mas essa característica seria comum a toda espécie?
Assim, no laboratório de informática, com a professora de Informática Educativa, pesquisamos mais e fizemos algumas descobertas. Também contamos com informações do livro “Luna em… Eu quero saber – Animais” (MISTRORIGO, 2016), através do qual também pudemos aprender e vivenciar a experiência de construir coletivamente uma teia de aranha com barbante e cola dissolvida em água. Paralelamente, realizamos trabalhos manuais com pintura e alinhavo, brincando de fazer teia como as aranhas. Também buscamos nos sentir como os insetos, ao passar por um emaranhado de barbantes que tomava cada canto da sala tentando não ficar presos na teia. Ao longo deste processo, as crianças colaboraram bastante com questionamentos, sugestões, hipóteses, dedicando atenção a cada informação, se tornando pequenos cientistas muito dedicados.
De acordo com Corsino (2012):
“Trabalhar com projetos na escola, desde a educação infantil, é uma forma de vincular o aprendizado escolar aos interesses e preocupações das crianças, aos problemas emergentes na sociedade em que vivemos, à realidade fora da escola e às questões culturais do grupo. Os projetos vão além dos limites do currículo, pois os temas eleitos podem ser explorados de forma ampla e interdisciplinar, implicando pesquisas, buscas de informações, experiências de primeira mão como visitas e entrevistas, além de possibilitarem inúmeras atividades de organização e registro, feitas individualmente, em pequenos grupos ou com a participação da turma toda.” (p. 102).
Ao relacionar o imaginário com o real, a criança está ao mesmo tempo compreendendo o mundo e recriando a realidade. Passamos a observar de forma mais atenta cada cantinho da escola em nosso cotidiano. Por vezes, as crianças encontravam alguma aranha e chamavam todos para vê-la. Juntos, tínhamos um olhar atento às suas cores, tamanho, patas, teias, andar… Esses momentos também suscitaram diálogos sobre medos e sobre a preservação da vida dos animais, quando alguma criança colocava a possibilidade de matar o bichinho porque este seria perigoso. Assim, investigamos também sobre que espécies oferecem perigo para os humanos. A partir das descobertas, escrevemos um texto elaborado coletivamente, sendo as professoras escribas da turma, registrando assim as informações as quais tivemos acesso e os conhecimentos produzidos.
Certamente, as pesquisas sobre as aranhas e outros seres ainda teria muito a explorar, o que não foi possível devido ao finalização do ano letivo. Encerramos o projeto, porém, com a certeza de que exploramos cada vertente do tema, atendendo aos interesses das crianças e descobrindo o mundo de diversas formas, vivendo experiências nos campos da ciência, da linguagem, da literatura, das artes… contemplando desde as mais variadas expressões criativas às investigações científicas.
Buscou-se ampliar os horizontes, as relações de interação e participação ativa dos sujeitos envolvidos, professores e crianças, com ampliação de vivências, experiências, conhecimentos de todos os que interagem. O trabalho foi envolvente, de construção no cotidiano e exigiu empoderamento dos sujeitos envolvidos para além da sala de aula, e com todos que com nosso projeto conviveram e fizeram parte de alguma forma. Acima de tudo, as crianças são vistas como seres culturais, forjados nesse contexto pela cultura que está muito além dos muros da escola e fazem dos sujeitos ativos.
Meyer (2003) corrobora com nossa afirmação ao relatar que:
Uma atividade vai puxando a outra… Uma história vai fazendo outra logo atrás… Será um projeto” Será uma unidade de experiência” Será um centro de interesse” Os nomes vão mudando, mas a intenção é muito parecida, não deixar o conhecimento solto por aí… Que ele seja trabalhado de forma integrada, interagindo com a vida e com o saber que cada um traz e compartilha no cotidiano (p. 102).
O mundo infantil é tão agregador que cabem muitas possibilidades de produção do conhecimento, o importante é estarmos abertos às possibilidades explicitadas pelas crianças em seu dia a dia, em suas interações, suas formas de se relacionar, em suas curiosidades.
Autoria:
Amanda Santos de Lima (slamanda.ppgeduc@gmail.com ) Colégio Pedro II
Bianca da Silva Brandão (biancabrandao80@gmail.com) Prefeitura de Mesquita e Prefeitura de Nova Iguaçu
Originalmente publicado na Revista Práticas em Educação Infantil – vol. 3; nº 3 54
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
- BRIGHT, Raquel. Monstro Amor. Girassol, 2012.
- BROWNE, Paula. Os monstros mais medrosos do mundo. Rocco, 2015.
- CORSINO, Patrícia. O cotidiano na Educação Infantil. Salto para o Futuro/ TV Escola/SEED/MEC. 2006;
- CORSINO, Patrícia. Trabalhando com projetos na educação infantil. IN: Corsino, Patrícia (org.). Educação Infantil: cotidiano e políticas. Campinas: SP, Autores Associados – Coleção Educação Contemporânea. 2012;
- DONALDSON, Julia. O Grúfalo. Brinque Book, 1999.
- DRUCE, Arden. Bruxa, bruxa, venha à minha festa. Brinque Book, 1995.
- EMBERLEY, Ed. Vai embora grande monstro verde. Brinque Book, 2009.
- GORBACHEV, Valeri. Tico e os Lobos Maus. Brinque Book, 1999.
- MACK, David. Criaturas Tímidas. Caramelo, 2008.
- MEYER, Ivanise Corrêa Rezende. Brincar e viver: projetos em educação infantil. Rio de Janeiro: WAK, 2003;
- MISTRORIGO, Kiko. Luna em… Eu quero saber – Animais. Salamandra, 2016.
- PIMENTA, Eliane. O Bicho-Medo e seu segredo. Manati, 2009.
- RINALDI, Carlina. O currículo emergente e o construtivismo social. IN: Edwards, C.; Gandini, L.; Forman, G. (Org.). As cem linguagens da criança: a experiência de Reggio Emilia em transformação. Porto Alegre: Penso, 2016.
- ROCHA, Ruth. Quem tem medo de monstro?. Salamandra, 2009.
- ROWLING, Joanne Kathleen. Harry Potter e a Pedra Filosofal. Rocco, 2000.
- TOKITAKA, Janaina. Escola de Monstros Madame Mo. Brinque Book, 2010.